O melhor de tudo não foi tão somente rasgar os papéis. O
melhor de tudo foi rasgar todas as contas que foram enviadas para um endereço
que não era o nosso. Não era sequer dos seus pais ou da sua avó. Triturar todo
o resto de lembrança daquilo que você um dia chamou de “lar” ou “nossa casa”.
Todas as faturas de cartões de crédito que não compraram presente pra mim ou
pra nós. Mandar embora toda a sua poeira, reduzir a lixo o documento daquele
carro onde você não andou sozinho, que não continha a nossa história de uma
noite muito louca. Sabe-se lá quantas outras noites e em que companhias muito
loucas você passou naquele carro.
Doar, jogar fora, mandar pro lixo para todo o sempre amém
blusas que você não usou pra me abraçar, que nunca viram meu cheiro, sapatos
que não trouxeram você pra mim antes que tudo isso acontecesse.
Ver você mandar embora sem volta cartões inúteis de
namoradinhas da quinta série, fotos suas abraçadas a uma outra qualquer na sua
formatura de terceiro ano, bilhetinhos tolos azuis com algum garrancho, em cujo
campo de destinatário alguma tola tenha escrito “Felipe, meu amor”.
Também torci em silêncio para que seu computador precisasse
ser formatado sem back up, pra que você perdesse fotos escondidas em algum
lugar daquele maldito HD e a playlist “Segundas intenções” fosse mandada pro
inferno – onde, aliás, se encontram as boas intenções.
Como bem disse uma amiga minha de colégio no encontro de
sábado: sou avessa a fotos. Os melhores clicks estão na minha memória, não
preciso de um papel pra me lembrar.
Quer dizer, eu preciso. Das nossas fotos. Não das SUAS fotos
onde eu não apareço nem sequer por trás da câmera.
Verdade. Mas bem mais ou menos.
Graças a Deus as lembranças vão ficando meio embaçadas com o
passar do tempo e hoje confesso que tenho que fazer alguma força pra me lembrar
de fisionomias de anos atrás. Acho que com todo mundo é assim e com você, meu
amor com o cérebro do tamanho de uma azeitona, não seria diferente. Então às
favas com as fotos!
Você me pediu que te ajudasse a empreender a tarefa de
arrumar o guarda roupa. Acontece que ver seu passado passar por mim doeu mais
do que eu imaginava. E eu imagino coisa pra caramba!
Ver que o que veio errado na sua mudança você nunca jogou
fora, que lembranças insignificantes você nunca jogou fora, doeu demais. E você
me comparar com a sua ex-mulher como num ato de heroísmo da minha parte ter
conseguido arrancar um ranço de você foi um soco na boca do estômago!
O Fred foi meu primeiro namorado, sabia? Foram dele as
cartas mais lindas que uma mulher, adolescente ou não, podia ter recebido na
vida. E sabe o que eu fiz com elas? Joguei fora. Joguei fora os cartões mais
apaixonados que recebi, as camisas que guardava de lembrança, várias fotos do
que um dia fomos nós dois – e por “nós dois” defina-se eu e todo aquele que não
foi você.
“Eu hoje joguei tanta coisa fora
Vi o meu passado passar por mim
Cartas e fotografias
Gente que foi embora
A casa fica bem melhor assim”
Eu te falei que às vezes a vida da gente não anda por causa
do tanto de tralha que a gente vai guardando. Você riu e deu de ombros até
encontrar, no meio da bagunça, um cartão que precisava há tempos para resolver
um problema. Viu? A vida andou.
Não sei como você não conseguiu entender o meu desapego na
hora de arrumar o meu armário... Se não usa há mais de um ano ou se não cabe
mais, é lixo. Se não faz mais parte da minha vida, é lixo. Sou pequena demais
pra ser museu. E nos meus 162cm de altura só cabem o presente – que, como diria
Drummond, é tão grande – e a perspectiva de um futuro sensacional. Olhar pra
trás é a mesma coisa que olhar nos olhos da Medusa: morte certa. Eu sei que o
que sou hoje é fruto do passado, mas o que serei amanhã vai ser fruto de hoje.
E não vou seguir arrastando correntes.
Tudo isso pra te dizer que eu fiquei com muita raiva de você
ter tido uma vida antes de mim. Você devia ter me esperado eternamente, num
monastério, num retiro budista na Índia, sei lá! Eu devia ter sido a primeira
em tudo.
E não se atreva a dizer que o meu passado cresce a cada dia
diante dos seus olhos te chamando pelo nome. Só eu sou passível de loucuras
possessivas. Você não.
Hahahaha...eu juro que não entendo as locuras possessivas...
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